20 de abril de 2020

Diário da Minha Jornada no Caminho de Compostela



OITAVO AO NONO DIA
Palas del Rey - Ribadiso de Baixo



No meio do trajeto entre  Palas del Rey  e  Ribadiso de Baixo me desliguei do grupo e cheguei nesse lugarejo sozinha. As  reservas  sempre  eram feitas previamente, no dia anterior, em nome de  alguém do grupo. Ao chegar  no albergue o recepcionista me informou que não havia nenhuma reserva em nome de alguém do nosso grupo. Então pedi que me indicasse alguma casa rural nas proximidades. Havia uma perto dali a Casa Rural da Bia e chegando lá a dona da pensão falou que não havia mais vagas para aquele dia. Retornei ao albergue, quando chegou uma peregrina brasileira de Curitiba que fez amizade com nosso grupo. Então ela me informou que havia feito a reserva de todos do grupo em seu nome,  a pedido de alguém. Fiquei tranquila, apesar de já ter feito uma reserva em um hotel perto dali, mas fora do caminho. Portanto preferi ficar no albergue junto com todos do grupo e desisti da reserva no hotel. Eu e a amiga de Curitiba nos acomodamos no albergue esperando  o restante  do grupo,  e aproximadamente meia  hora depois,  os demais  companheiros  chegaram. 




Em Ribadiso não havia muito o que fazer, é um povoado bem pequeno. Tudo se concentrava no albergue e fizemos nossas refeições ali mesmo. O menu peregrino, encontrado em restaurantes ao longo do caminho, é muito farto e substancial: uma sopa de entrada ou caldo galego, feito com legumes e verduras; o prato principal com carne bovina, ou suína, ou frango ou pescado, acompanhado de uma salada verde, ou batatas ou massa; e uma sobremesa. Também sempre presentes no menu peregrino os itens tradicionais, pão e vinho.
Depois do almoço fiquei a maior parte do tempo no quarto, repousando para estar bem e caminhar no dia seguinte. Assim ocorreu e ainda cedo partimos com destino a Pedrouzo. O tempo continuava chuvoso, a Galícia é muito úmida, ali chove quase o ano inteiro.
Em certo trecho deste percurso passamos em um povoado rural, com poucas casas de pedras, bem típicas da Galícia, onde encontramos alguns cães de guarda, bem grandes, que latiram de forma ameaçadora quando nos avistaram. Lembrei que devemos erguer o cajado do chão, quando há cães de guarda por perto, pois eles ouvem o barulho dos sticks no solo como uma ameaça, uma vez que têm a audição bem mais apurada que a humana. Assim fizemos, seguindo com os cajados erguidos na posição horizontal. Eu enviava mensagem telepática para os cães: “somos amigos, nos deixem passar”. Então os cães pararam de latir e passamos em frente, caminhando em paz.
Nos trechos íngremes de subidas, quando ficava muito cansada, outra música que me vinha sempre à mente era a Marselheise, o hino da França. Passei minha infância ouvindo minha mãe cantar este hino. Ela foi professora de francês na escola de ensino ginasial, na pequena cidade de Palmeirais, onde eu morei até os nove anos de idade.
Nas aulas de francês minha mãe ensinava a Marselheise aos seus alunos e cantava com eles. Nessa época eu tinha aproximadamente sete anos de idade, a escola ficava bem perto da nossa casa. Eu gostava de ver minha mãe ensinando francês e, às vezes, ficava apoiada no parapeito da janela da sala de aula, do lado de fora, quando ela cantava o hino da França junto com os alunos.
No caminho eu lembrava dos versos da Marselheise, a parte que fala dos cidadãos marchando e formando batalhões, para se saciarem do sangue impuro dos inimigos.
Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons! Marchons, marchons, qu'un sang impur abreuve nos sillons! “
Eu associava esses versos do hino da França, com as aulas de ciências, onde aprendi que os leucócitos eram os soldados do organismo na batalha contra as infecções. Meu maior inimigo no caminho era a virose que contraí no trajeto de Villafranca. Então eu cantava a Marselheise e imaginava os soldados do organismo, os leucócitos, vencendo o inimigo, os vírus que minavam minha energia para caminhar. Os soldados ficavam saciados do sangue impuro, contaminado do vírus da gripe. Imaginava o batalhão de soldados leucócitos marchando e vencendo os vírus inimigos. E no final da batalha eu conseguiria o sangue original, puro e sagrado, livre de toda contaminação.
Eu imaginava que poderia estar com o mesmo vírus da gripe espanhola, que contagiou boa parte da população da Espanha no século XVIII. Muita gente morreu nessa época, devido ao surto dessa gripe. Pensava nos inúmeros peregrinos que haviam morrido na rota de Compostela, por contraírem alguma doença durante a caminhada. Eu não iria fazer parte dessa estatística fúnebre, pois conseguiria vencer a virose e chegar a Santiago de Compostela”, dizia para mim mesma .
Em um determinado trecho avistei um antigo túmulo coletivo. A lápide era enorme e nela havia o nome de todos os falecidos. Conjecturei que muitos deles teriam morrido fazendo o caminho. Imediatamente procurei descartar o medo e qualquer pensamento negativo, encontrando a coragem necessária para seguir adiante e conseguir a vitória no final da jornada. Nesse momento eu repetia para mim mesma a frase que ouvira antes: “A dor é transitória, a glória é para sempre“. A vontade de caminhar era maior que o medo e novamente eu lembrava de rezar o salmo 23 :
O Senhor é meu Pastor, nada me falta; em verdes paisagens me faz repousar, para fontes de águas tranquilas me conduz; e restaura minhas forças ; Ele me guia por bons caminhos, por amor ao seu nome, conforme prometeu ; meu caminho é de luz e nada temerei, pois junto a mim Ele está ; seu bastão e seu cajado me dão segurança ” ...
Eu rezava e me apoiava no stick, meu bastão de metal, azul e prata. E continuava a caminhada , subindo as ladeiras íngremes, cheias de pedregulhos. E ficava extasiada com tanta beleza; ouvia o gorjeio dos passarinhos; o barulhos das fontes; o soar da leve brisa nas folhas das árvores; as flores da primavera de todas as cores e tipos; os peregrinos do mundo inteiro que passavam por mim desejando buen camino .



Os leucócitos, soldados do meu organismo, continuavam saciando-se do sangue impuro. Então eu cantava o hino da França e sentia meu organismo reagir à virose. Sim, eu conseguiria vencer o inimigo! Eu conseguiria ter a força necessária! E continuava a cantar, agora não mais o hino da França, mas a música do grupo infantil “Balão Mágico”, que dizia:
Eu tenho a força, sou invencível, juntos amigos, unidos venceremos a semente do mal “.
Chegamos em Pedrouzo ainda cedo, por volta das onze horas e ficamos esperando a abertura do hostal, com outros peregrinos que também chegaram antes. Já me sentia bem melhor, estava bem disposta, a caminhada daquele dia não foi muito cansativa.



Depois de nos acomodarmos no hostal fomos almoçar na companhia de duas peregrinas sulistas que se juntaram ao grupo. Em seguida fomos ao mercadinho fazer as compras para uma confraternização no jantar, pois no dia seguinte nossa jornada terminaria, já estávamos a poucos quilômetros da cidade de Santiago de Compostela.








19 de abril de 2020

Diário da Minha Jornada no Caminho de Compostela

QUARTO DIA
Cebreiro - Triacastela

Na subida do Cebreiro

A descida do Cebreiro foi um pouco mais difícil que a subida. Primeiro, porque o percurso era bem mais longo, caminhamos em torno de 27 km. Segundo,   porque eu estava bastante gripada e saímos  bem cedo, em jejum, com frio e   névoa.   Coloquei    minha       jaqueta impermeável com capuz e a bandana    cobrindo o nariz,  para proteger a face da   friagem. Uma das peregrinas do nosso   grupo havia guardado na mochila a  sobremesa do jantar da  noite anterior, torta de Santiago, e me deu uma fatia. Eu havia guardado algumas barrinhas  de chocolate e também compartilhei com ela meu“pão“. Assim conseguimos ter a energia  necessária  para   caminhar   até  o  próximo pueblo, uns  três quilômetros   adiante,   onde pudemos fazer uma primeira refeição mais substancial. Devidamente alimentada e com a energia para caminhar recuperada, segui adiante caminhando e cantando pelas trilhas da região do Cebreiro, ora íngremes, ora cheias de esterco de animais, mas sempre verdejantes e floridas. Caminhar pelos campos galegos é uma delícia!


Marco da divisa da Galícia 
A Galícia é uma região especial  da Espanha, por muitos considerada como a parte mais bonita e poética do Caminho de Compostela. O nome Galícia tem a mesma raiz celta de Galia (antiga França) e País de Gales (Grã-Bretanha). A região foi ocupada e colonizada pelos celtas no século 6 a.C. Sua capital é a cidade de Santiago de Compostela. É um território autônomo da Espanha, situando-se ao noroeste da Península Ibérica, fazendo divisa com Portugal e banhado pelo Oceano Atlântico, sendo conhecida pelo seu litoral bem recortado, rochoso, com uma grande quantidade de frutos do mar, considerados os melhores da Espanha e muito apreciados em toda a Europa. Os nativos fazem questão de dizer que são “galegos”. Na Galícia falam um espanhol bem semelhante ao português de Portugal. Eles dizem que falam o idioma “galego” e não espanhol ( saiba mais  sobre a Galícia  AQUI ).


Dizem que a Galícia é o Graal dos peregrinos, o ponto mais emblemático da caminhada. No brasão dessa província chamam a atenção as sete cruzes ao redor do Cálice Sagrado ou Santo Graal. 
O trecho galego do Caminho Francês começa na aldeia do Cebreiro, uma região que remonta ao período pré-histórico, entre as serras do Courel e Ancares. É um dos lugares mais singulares do Caminho e está situado a uma altitude de 1300 m. No período invernoso, a neve faz o caminho desaparecer e um manto branco confunde o povoado com as colinas que o rodeiam. As pallozas do Cebreiro são casinhas circulares, cobertas de palha, que dão ao local uma atmosfera mítica de contos de fadas.
Na  Pallozza 

Além das pallozas, se destaca no Cebreiro o templo de Santa María de La Real, de característica pré-românica. Como já dito no capítulo anterior, na Capela do Santo Milagre, nessa igreja, é onde se encontra um símile   do Cálice do Santo Graal.
Outros pontos fortes do Cebreiro são a culinária e o excelente vinho produzido na Galícia, muito apreciado pelos peregrinos. Nos bares existentes no povoado, servem vinho acompanhado da empanada galega, que é uma espécie de pão recheado com pimentões, tomates e atum ( ou carne, ou bacalhau ). A torta de Santiago também é muito apreciada pelos peregrinos, feita com amêndoas, trigo e canela. Há um adágio peregrino que diz : "Com pão e vinho, se faz o Caminho ".
Igreja Santa Maria de La Real 

No Cebreiro fiz tudo que havia imaginado: conheci a Igreja do Santa Maria de La Real onde está o Cálice do Santo
Milagre; as lindas pallozas que remontam às palhoças indígenas; saboreei a torta de Santiago, a empanada galega e o excelente vinho produzido na Galícia. Pena que não pude saborear um prato típico e muito apreciado pelos peregrinos, “pulpo a la galega”, preparado com polvo e batatas. Eu estava muito gripada e nessas condições não é recomendável comer molusco, que é considerado um alimento muito reimoso. Por isso resisti à tentação de saborear o “pulpo” galego.
Nesse dia, em certo trecho da caminhada, passei a andar somente na companhia de uma das  taiwanesas que se  agregou ao  nosso  grupo  e imaginei que os demais  companheiros estivessem  todos adiante de nós duas,  com exceção de uma, que  pensei  estar caminhando sozinha atrás de todos, pois na ocasião observei que ela  ficou para  trás tirando selfs e fotos da paisagem. Quando em certo momento perdi-a de vista fiquei preocupada e parei para esperar. Decorrido algum tempo de espera e como ela não aparecia, fiquei um pouco aflita, pois imaginei que ela  teria ficado desatenta das setas de sinalização do caminho e seguido por outra via. Estávamos em uma trilha, no meio de  um bosque, numa  região desabitada. Passei então a chamá-la em voz alta, na esperança que o som chegasse até ela e retornasse ao caminho certo. Pouco tempo depois ela apontou ao longe acompanhada de dois companheiros do grupo, que haviam ficado também para trás. Suspirei aliviada ao verificar que foi apenas uma “viagem na maionese”, pois a amiga não estava perdida, tampouco caminhava sozinha.
Mesmo percorrendo o caminho em grupo, às vezes caminhamos sozinhos, conforme a necessidade de silêncio para refletir. Isso acontece ao longo da jornada, pois ora seguimos juntos com outros peregrinos conversando com eles, ora seguimos somente com nossos pensamentos. São momentos distintos e necessários. No entanto, durante a caminhada, mesmo quando me distanciava do grupo e seguia sozinha, ficava atenta para não permanecer muito tempo sem visualizar algum companheiro, pois há casos de peregrinos que se perdem dos seus grupos e isso causa uma certa intranquilidade, principalmente para aqueles que não se sentem seguros caminhando só.
Andamos em torno de 27 km e por fim chegamos na cidade de Triacastela. Aproveitei para comprar algumas frutas para o dia seguinte, pois iríamos sair novamente bem cedo. Eu continuava bastante gripada e só saí do albergue para almoçar, fazer um breve passeio pelo centro da cidade para as compras no mercadinho e na farmácia. À noite, após o jantar, me recolhi cedo para recuperar as energias. E no dia seguinte, bem cedo, partimos com destino a Sarria .

                                                                        ***



No Caminho de Compostela - 3º Dia


Terceiro dia 
Vega de Valcarce - Cebreiro



O terceiro dia de caminhada foi na subida do Cebreiro. Este trecho é considerado o segundo de maior dificuldade no Caminho Francês, sendo mais difícil do que ele apenas a subida dos Pirineus. Iniciei a caminhada bem cedo, por volta das 6:30 horas, com todos do grupo. Estava bem disposta, havia descansado bastante no albergue em Vega de Valcarce.
Não senti muita dificuldade, achei uma delícia a subida do Cebreiro, apesar de muitos trechos com ladeiras íngremes. Lembro que neste trajeto o caminho é exuberante: vales cheios de flores, muito verde, ribeirinhos e pequenas cachoeiras, os animais nos pastos dos campos da Galícia, as casinhas rústicas e floridas dos campesinos .
Quando chegamos no marco que indicava a fronteira entre os territórios de Castela y Leon e a Galícia paramos para tirar fotos, pois a chegada no território galego era um dos mais esperados momentos.
Eu continuava cantando e caminhando, caminhando e cantando, pois tudo era muito prazeroso. Nesse trajeto cantei “Somewhere over the rainbow “. A paisagem magnífica me inspirou e os versos que falam de algum lugar além do arco-íris, onde nossos sonhos podem se realizar, soaram bem naquele momento .

A expectativa de chegar no povoado Pedrafita era muito grande, pois este é um dos lugares mágicos do caminho. Dizem que na Igreja de Nossa Senhora está um símile do cálice sagrado, utilizado por Jesus para tomar o vinho na última ceia, junto com os 12 apóstolos, antes de ser crucificado. O símile do Cálice Sagrada teria chegado até o Cebreiro através da Ordem dos Templários. Portanto, o Cebreiro simboliza o Santo Graal dos Peregrinos, um lugar emblemático.



Cheguei junto com todos do grupo no povoado de Pedrafita. No momento da chegada uma turma de estudantes pré-adolescentes, todos uniformizados, percebendo que nosso grupo era de brasileiros começaram a gritar o nome de um famoso jogador de futebol do Brasil. Eu não sou muito chegada a idolatria de astros do futebol, entretanto achei muito legal a atitude amistosa dos adolescentes. As pessoas do nosso grupo que gostam de futebol, também ficaram entusiasmadas com a recepção calorosa dos estudantes.

Quando chegamos no povoado Pedrafita, nos acomodamos em um hotel bem típico, com paredes de pedras. Uma parte do  nosso  grupo preferiu  ficar no albergue municipal, somente  eu  e outros  três  amigos  ficamos  hospedados   em um hotel. Meu quarto no segundo andar, parecia de uma casinha de contos de fadas. Da janelinha perto da cama eu avistava as ruas do povoado, com o movimento dos peregrinos e turistas. O dono do hotel era muito parecido com meu irmão mais velho, já falecido. Pensei em tirar uma foto dele, para mostrar a minha família, mas tive um acesso de timidez e fiquei sem jeito de pedir isso a ele.

O dia estava frio, com bastante névoa. Logo na chegada fiz um breve passeio apreciando a beleza rústica das pallozas e das construções de pedras. Fui na igreja  para ver o cálice do Santo Milagre. O Cebreiro é pura magia, há uma energia diferente por lá, parece que estamos em outro mundo, num tempo distante .



Na manhã do dia seguinte deixamos a aldeia de Pedrafita. Meu coração ficou apertado no momento da saída, queria muito ficar mais um dia ali, pelo menos mais algumas horas. Ainda relutei com os companheiros do meu grupo, para sairmos mais tarde e aproveitar o café da manhã em um dos restaurantes típicos. Mas não acataram minha sugestão e saímos bem cedo, com muita névoa. Eu estava gripada e sair naquelas condições, com o corpo febril, o frio da manhã e sem fazer o desayno - pois naquele horário não havia nenhum restaurante ou cafeteria abertos - foi muito pesado para mim. Mas sabia que andando em grupo teria de acatar a decisão da maioria, portanto não pude reclamar. Também não quis caminhar sozinha meio indisposta e descartei a opção de sair depois de todos. Apenas cobri minha face com a bandana, para me proteger da friagem no rosto e segui junto com os companheiros de jornada, na descida da montanha do Cebreiro. Como diz o ditado popular “na descida todo santo ajuda”.

Quando já estávamos próximos do local de pernoite, a cidade de Triacastela, no limite do Cebreiro com esse povoado, ao avistar o vale florido da linda paisagem galega, me despedi do Cebreiro bradando em voz alta na direção dos campos de flores : “ I love Galicia ! I love Cebreiro ! “ . O eco das montanhas do Cebreiro repetia : ” Love Galícia , love Cebreiro “. Era o meu grito de vitória, eu sentia que estava a caminho do Graal.



8 de maio de 2019

Diário da Minha Jornada no Caminho de Compostela


Escrevi  um livro   com o  diário da  minha  jornada no  Caminho de  Santiago. O   trecho a  seguir  é o capitulo  inicial da  obra, que  ainda  não  foi  editada. Vou publicar  aqui  no blog   algumas  partes  do  livro,  o primeiro capitulo e  outros  dois  que  escolherei para  outras  duas postagens. 



* * *

Primeiro dia  


Fazer o caminho de Santiago não estava nos meus planos, até saber através de um espanhol que conheci na viagem a Macchu Picchu, que o caminho de Compostela poderia ser feito de acordo com as escolhas do peregrino. Até aquele dia eu imaginava que o caminho de Santiago somente poderia ser realizado numa rota determinada oficialmente, sem que o caminhante pudesse escolher o início do percurso. Quando soube que fazer o caminho de forma personalizada, podendo ser iniciado no local escolhido e pelo tempo necessário, fiquei interessada, pois não teria tempo nem disposição para percorrer toda rota do caminho francês, aproximadamente 800 quilômetros. Para isso teria que me preparar mais e por um período maior. Caminhar 150 a 200 km, em dez dias, já seria muito bom para mim.
Ao retornar da viagem ao Peru comecei a planejar a realização do caminho de Santiago. No início pensei em ir sozinha. Como não gosto de viajar sem companhia, o universo conspirou a favor e encontrei um grupo que faria a caminhada na mesma época que eu escolhera, na primavera. Então passamos aos preparativos, com a aquisição do equipamento e roupas adequadas, bem como a preparação física e mental. Treinamos em trilhas rurais, também em pistas urbanas e adquirimos o necessário para nossa jornada.
Passei seis meses em intensa pesquisa sobre o assunto e compartilhei o aprendizado adquirido nessas pesquisas em um blog na internet (http://nocaminhodecompostela.blogspot.com.br). Por fim chegou o dia tão esperado, quando saí de Madri rumo a Ponferrada, onde seria iniciado o caminho, em companhia de duas amigas que seriam minhas principais companheiras de caminhada. Planejamos percorrer um quarto do Caminho Francês, em torno de 200 km . Outros três integrantes do grupo viajaram antes, pois fariam toda rota do caminho francês, inciando por San Jean Pied Port, na França.
Fizemos a viagem de Madri a Ponferrada de ônibus e nesse trajeto já vislumbrei a beleza do caminho, pois a paisagem que descortinava na janela era de tirar o fôlego. Flores enfeitavam todo percurso e o jardim de Deus era um regalo para os olhos. Com tanta beleza, as horas de viagem  passaram-se  com rapidez, de sorte que cheguei em Ponferrada sem nenhum vestígio de cansaço, apesar de ter acordado ainda na madrugada, para pegar o ônibus na estação rodoviária em Madri.


Chegando em Ponferrada e acomodada no hotel, fui até um dos albergues dessa cidade onde estavam hospedados os demais do grupo que iniciaram a caminhada em San Jean Pied Port. Nosso grupo passou a ser formado por nove pessoas: eu e as duas amigas que viajamos por último, mais outras seis pessoas, entre as quais duas taiwanesas que se juntaram ao grupo que já havia iniciado o caminho.
Logo que cheguei em Ponferrada já pressenti uma pequena dificuldade de interação, pois alguém impaciente demonstrou que seria pouco tolerante com eventual necessidade de espera por algum motivo, sugerindo que eu poderia seguir no caminho sozinha, caso não acompanhasse a pressa do grupo. Eu, diferente dos demais, estava com duas bagagens para administrar no serviço de transporte e às vezes isso levava algum tempo. Esta foi a primeira provação que tive durante a jornada e a primeira lição do caminho: ter paciência e ser tolerante com eventual falta de paciência ou intolerância. Parece um paradoxo, mas é assim mesmo. Mostrar a outra face é a melhor atitude .
Somos nós os únicos responsáveis por nossas expectativas em relação aos demais. Ninguém pode ser responsabilizado por nossas expectativas não satisfeitas, a não ser nós mesmos. Mas há um limite tanto para a paciência, como para a tolerância. Eu sabia que chegando no meu limite quanto aos demais e no limite dos demais em relação a mim, seria o caso de seguir sozinha e para isso teria de estar em condições de autonomia.
Às vezes ficamos presos a um padrão de comportamento, sem condições de autonomia e liberdade de escolha. Sentir que estamos libertos dos nossos medos, das nossas limitações, nos capacita para seguirmos sozinhos, com autonomia e liberdade. Assim podemos desenvolver a habilidade de construir relações saudáveis, com pessoas que estejam alinhadas com o propósito de nossas almas. E nada melhor do que o convívio com aqueles que estejam na mesma sintonia, com os mesmos propósitos e ideais. Mas a convivência na diversidade é um aprendizado para lidar com a adversidade e desenvolver a resiliência. E para isso o exercício da tolerância e da paciência é necessário.
Ponferrada é uma cidade muito agradável, cuja atração turística principal é o Castelo dos Templários, um desses lugares que parecem mágicos, saídos de contos de fadas ou filmes. Foi assim que senti, quando ali cheguei, como se estivesse em um cenário .



O castelo originariamente era uma fortaleza e foi construído no século XV por Dom Pedro Álbarez de Osório, Conde de Lemos. Ao redor dele apareceu uma cidadela que se chamava Ordem do Templo, hoje denominada Ponferrada. Dentro do castelo há uma biblioteca com uma exposição chamada “Templu Libri” ( templo do livro), com alguns dos mais belos exemplares sobre os templários, que até pouco tempo estavam ocultos, pois pertenciam a coleções de monastérios, universidades e museus. É considerada a maior biblioteca do mundo sobre esse tema.
A Ordem dos Templários foi uma ordem militar de Cavalaria, que teve existência por cerca de dois séculos, na Idade Média. Foi criada com o propósito original de proteger os cristãos que voltaram a fazer a peregrinação a Jerusalém, após sua conquista. O sucesso dos Templários esteve vinculado ao das Cruzadas. Quando a Terra Santa foi invadida, o apoio à Ordem reduziu-se. Rumores acerca da cerimônia de iniciação secreta dos Templários criaram desconfianças e o rei Filipe IV da França - também conhecido como Felipe, O Belo - profundamente insatisfeito com a Ordem dos Templários, começou a pressionar o papa Clemente V a tomar medidas contra ela. Em 1307, muitos dos membros da Ordem na França foram detidos e queimados publicamente, acusados de bruxaria e idolatria. Em 1312, o papa Clemente dissolveu a Ordem. O súbito desaparecimento da maior parte da infraestrutura europeia da Ordem deu origem a especulações e lendas, que mantêm o nome dos templários vivo até os dias atuais.


 O cavaleiro templário era muito destemido e seguro. Sua alma era protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo era protegido pela armadura de aço. Portanto, era duplamente protegido e não temia nada do mundo material, tampouco do mundo invisível. Levando uma forma de vida austera, os templários não tinham medo de morrer na defesa dos cristãos que iam em peregrinação à Terra Santa.
Com o passar do tempo esta Ordem ficou riquíssima e muito poderosa pois os Templários receberam várias doações de terras na Europa, ganharam enorme poder político, militar e econômico, o que acabou permitindo estabelecer uma rede de grande influência no continente.

A destruição da Ordem do Templo propiciou ao rei francês não apenas as propriedades dessa Ordem, como a eliminação do exército da Igreja, o que o tornava senhor rei absoluto na França. Nos demais países, a riqueza da Ordem ficou com a Igreja Católica. Os Templários tornaram-se, assim, associados a lendas sobre segredos e mistérios, e mais rumores foram adicionados nos romances de ficção, como Ivanhoé, O Pêndulo de Foucault e O Código Da Vinci. No cinema tem "A Lenda do Tesouro Perdido" e "Indiana Jones e a Última Cruzada". Dizem que há ligações entres os Templários e uma das mais conhecidas sociedades secretas, a Maçonaria .

Muitas das lendas dos Templários estão relacionadas com a ocupação do monte do Templo em Jerusalém e da especulação sobre as relíquias que esta Ordem pode ter encontrado lá, como o Santo Graal ou a Arca da Aliança. O tema das relíquias também surgiu durante a Inquisição dos Templários que foram acusados de idolatria e bruxaria.

Além de possuir riquezas e uma enorme quantidade de terras na Europa, a Ordem dos Templários tinha uma grande esquadra. Os cavaleiros, além de temidos guerreiros em terra, eram também exímios navegadores e utilizavam sua frota para deslocamentos e negócios com várias nações. Devido ao grande número de membros da Ordem, apenas alguns dos cavaleiros foram aprisionados (a maioria franceses). Os cavaleiros de outras nacionalidades não foram aprisionados e isso possibilitou que se refugiassem em outros países. Segundo alguns historiadores, alguns cavaleiros foram para Escócia, Suíça, Portugal e até para lugares mais distantes, usando seus navios. Muitos deles mudaram seus nomes e se instalaram em países diferentes, para evitar uma perseguição do rei e da Igreja.

Um dado interessante relativo aos cavaleiros que teriam fugido para a Suíça, é que antes dessa época não há registros da existência do famoso sistema bancário daquele país, até hoje utilizado e também discutido. No auge da formação da Ordem, os cavaleiros templários desenvolveram um sistema de empréstimos, linhas de crédito, depósitos de riquezas que na sua época já se assemelhava bastante aos bancos de hoje. É possível que tenham sido os cavaleiros que se refugiaram na Suíça que implantaram o sistema bancário no lugar e que até hoje é a principal atividade do país.

Chegando no castelo com uma das peregrinas do grupo, encontramos um casal de jovens brasileiros que faziam o caminho de bicicleta. A menina nos cumprimentou alegremente e falou que já havia chorado muito no caminho . Não entendi o motivo de tanto choro. Ela estava com o rosto bem queimado do sol e parecia feliz, apesar do aparente cansaço. Depois descobri que o caminho é assim mesmo. Ficamos ao mesmo tempo alegres e tristes, cansados e energizados . Não sei dizer como isso é possível, mas é real.
Ao passear pelo castelo dos templários tive uma leve sensação de déja vú. Seria só impressão, ou eu já conhecia aquele lugar? O sentimento de familiaridade era uma constante. Ao visitar o museu e a biblioteca do castelo, tudo me era familiar, desde a roupa usada pelos templários, como a fisionomia das pessoas retratadas nos quadros e esculturas ali existentes. Parecia que em algum tempo distante eu fizera parte daquele cenário. Ou seria somente uma impressão?
Depois do passeio ao Castelo retornamos ao hotel. No dia seguinte, bem cedo, iniciei a caminhada com os demais do grupo. Com uma mochila pesando 7,6 kg, o cajado metálico prata com detalhes na cor azul e vestida também com roupa predominantemente azul, saí a andar pelo caminho de flores. Já na saída percebi que não estava com o boné e deduzi que ele havia caído em algum lugar. Fiquei um pouco apreensiva, pois este era um acessório muito importante, uma vez que o dia prometia ser bastante ensolarado. Então um dos amigos de caminhada me ajudou a encontrá-lo, retornando comigo até o lugar onde o boné estava caído no chão. No caminho é assim. Sempre há um amigo por perto para nos auxiliar nos momentos que precisamos de ajuda.
Verifiquei que tinha esquecido algo muito importante no hotel, a garrafa de água. Ainda era cedo e não havia naquele horário nenhuma lanchonete ou cafeteria abertas. Caminhei em torno de um quilômetro meio sedenta, até encontrar uma lanchonete. Comprei duas garrafas pequenas e verifiquei que por coincidência elas eram azuis, combinando com minha roupa e o cajado. Coloquei as duas garrafinhas azuis nos bolsos laterais da mochila e segui acompanhando o grupo.
No momento da saída em Ponferrada, quando iniciei a caminhada, segui em frente na pista da avenida e não observei a seta que indicava o caminho direcionada para um pequeno atalho na lateral da pista. Então uma das pessoas do grupo me chamou e retornei na direção certa. Estar atenta aos sinais do caminho é uma das primeiras lições que aprendemos. Qualquer desatenção pode nos levar a seguir na direção errada .


No início da caminhada fiquei tocada pela emoção e por um momento entendi o motivo pelo qual a menina que fazia o caminho de bike falou que já havia chorado muito. Ela, como eu, chorava de emoção. É tanta beleza no caminho, que não cabe nos nossos olhos e por isso choramos. Muitas flores, rosas enormes, lindas! Flores do campo, lírios, margaridas. Aquele era o caminho que eu sempre imaginei percorrer, um caminho de flores. Estava vestida de azul. Meu stick também tinha detalhe na cor azul. E as garrafinhas de água eram azuis. Então iniciei a caminhada cantando a música do Lulu Santos:
" Tudo azul, todo mundo blue. No Brasil, sol de norte a sul. Tudo bem, tudo zen, meu bem. Tudo sem força e direção. Nós somos muitos, não somos fracos, somos sozinhos nessa multidão, nós somos só um coração, ligados pelo sonho de viver ...“ 
Eu me sentia assim, como os versos da canção: forte , meio ”blue” e zen . Às vezes sem força, pois o peso da mochila me deixava muito cansada. Às vezes sem direção, pois me distraía das setinhas que indicavam o caminho. E às vezes me sentia só, apesar de caminhar na companhia de outras pessoas. Mas não era solidão, era a sensação de que o caminho, mesmo sendo feito na companhia de outros, era por mim percorrido através dos meus próprios passos. Portanto eu estava só, apesar da companhia. Ao mesmo tempo eu me sentia ligada a tudo e a todos que ali estavam. Viver aquela experiência nos ligava por um fio invisível. Era o dom de viver a vida com liberdade, de viver nosso sonho, que para algumas pessoas poderia parecer maluquice.



Nesse trajeto fui contaminada por uma virose. Lembro que nesse percurso a água que eu trazia nas duas garrafinhas acabou. Então alguém do grupo generosamente me deu um pouco da água do seu cantil . Chegando em um lugarejo enchi minha garrafa em uma bica de água potável que havia ali. Na Europa existe o hábito de beber água da torneira. Eu não tenho esse hábito, portanto em todo lugar eu comprava água mineral engarrafada. Mas nesse percurso minha garrafa secou e fiquei sedenta. Não havia nenhum local para comprar água, era um trecho meio desabitado. Assim tive de encher a garrafa com água da torneira. Não sei ao certo se fui contaminada com essa água, ou por outro motivo meu sistema imunológico não reagiu de forma adequada a alguma contaminação viral. O certo é que cheguei em Villafranca sentindo o corpo dolorido e com as vias aéreas congestionadas. Além disso, a caminhada de 29,6 km logo no primeiro dia, com a mochila pesada, sobrecarregou minha coluna o que me deixou sem condições de caminhar no dia seguinte. Então tive de pegar um táxi no percurso do segundo dia de caminhada  (12 km),  até Vega de Valcarce, pois não poderia ficar atrasada no caminho, uma vez que estava com um grupo e havia um tempo determinado para realizar o trajeto até Santiago.
Algo me deixou um pouco introspectiva nesse trajeto. Foi quando paramos para lanchar em um povoado. Após ser atendida no balcão e verificando que a cadeira da mesa onde deixei minha mochila fora ocupada por uma pessoa do grupo, me sentei em uma mesa onde se encontrava outra peregrina. Então esta pessoa me disse que aquele lugar estava anteriormente ocupado pelas duas taiwanesas que se agregaram ao grupo que veio de San Jean Pied Port, dando a entender que eu deveria me retirar. Eu ainda não havia me entrosado com as taiwanesas, pois acabara de conhecê-las naquele mesmo dia e geralmente os orientais são um pouco reservados com pessoas que ainda não fazem parte do seu círculo de amizade, assim como também sou. As duas asiáticas, muito educadas, delicadamente sentaram-se em outra mesa, uma vez que não havia lugar marcado ali. Então a mesma pessoa, verificando que eu não me retirava, meio incomodada retirou-se para a mesa onde estavam as taiwanesas. Confesso que me senti um pouco excluída, pois todas poderiam sentar-se  ali, havia lugares e cadeiras suficientes. Fiquei na mesa tomando o lanche sozinha e pensando comigo mesma : " Os incomodados que se retirem ". Eu não estava nem um pouco incomodada  com a  companhia, portanto permaneci na mesa.
Pouco depois passei a conhecer mais as duas taiwanesas e confesso que foram pessoas especiais, entre outras que conheci no caminho. Sei que meu caminho foi um aprendizado de tolerância, paciência e autoconhecimento. Foi um caminho de mais introspecção do que extroversão. Aprendi muito com todas as pessoas que fizeram parte dele e sou grata a elas, inclusive às duas adoráveis peregrinas taiwanesas, bem como à pessoa que indelicadamente me deixou lanchando sozinha, retirando-se para outra mesa, mas em outras ocasiões foi atenciosa comigo e com todos  do grupo.




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